Reflexão

4 Crônicas do Walcyr Carrasco

O dramaturgo Walcyr Carrasco é referência em novelas e escreveu tíulos como Xica da Silva, O Cravo e a Rosa, Chocolate com Pimenta e Verdades Secretas. O que muita gente não sabe é que o autor também escreve crônicas incrivelmente divertidas sobre a vida e o cotidiano. Abaixo você confere 4 textos imperdíveis:

1. A Raça Superior

A ESPÉCIE HUMANA ACREDITA ser a única inteligente. Puro engano. Há tempos imemoriais nós, os humanos, fomos derrotados por uma raça superior, muito mais esperta. Mais que derrotados, fomos domesticados. Pelos cachorros.

De fato, sob qualquer índice de avaliação, a raça canina se mostra superior. Quem convive com um cão gosta de dizer que é “dono”. Como acreditar, se tudo prova que o cachorro é dono do homem? Na questão da alimentação, por exemplo.
Qualquer pessoa gasta dinheiro e tempo para comprar ração. Analisa os vários tipos e até experimenta uns pedacinhos para avaliar o sabor. Corre atrás de ossos para proporcionar tardes de degustação ao cachorro. Compra imitações de borracha. Indústrias pesquisam novas rações nutritivas.

Gastam uma fábula em propaganda. Ou seja: sem levantar uma pata, o cachorro faz com que os seres humanos trabalhem torrando neurônios, tempo e dinheiro simplesmente para alimentá-los! Certa vez tive uma cachorrinha que só podia comer arroz com cenoura e carne moída. Estava sem empregada. Durante um mês levantava uma hora antes, preparava a comida e saía para trabalhar. Ao voltar, servia uma nova refeição e lavava o prato. Em troca, ela me lambia os dedos. Eu me sentia no cúmulo da felicidade só de receber essas lambidinhas! Seja dita a verdade: quem era dono de quem?

E na questão amorosa? Quando gosta, de alguém, o cão abana o rabo.
Pode ser um desconhecido. Gostou, abanou. Quando está a fim, deita-se de patas para cima e lança um olhar bem pidoncho. Até o coração mais duro não resiste a dar carinho, cocar as orelhas, fazer uns afagos. Eu, não. Nunca me deitei de barriga para ficar me oferecendo. Vontade não faltou, mas e a coragem? Nós, seres humanos, usamos artifícios. Gastamos dinheiro em perfumes, em cabeleireiros, em dermatologistas. Vamos a happy hours, jantares, festas, barzinhos da moda, entramos em chats da internet, só para achar quem nos coce as orelhas. Se alguém faz festa para todo mundo que conhece, rebolando como um cãozinho, vem o veredicto:

— Ih! Está com carência afetiva.

Toca a procurar terapeuta. Horas e horas dedicadas a analisar a pura
vontade de buscar amor! Revistas dedicam quilômetros de papel a.práticas de sedução. Como olhar de lado, como sorrir, como se oferecer sem dar na vista.

Mais: como ter coragem de expressar os sentimentos. Cachorro, não. Abana o rabo e pronto. Muitas vezes, com ciúme, já tive vontade de morder alguém. Ao contrário, sorri simpaticamente enquanto o sangue fervia. Cães não possuem esse tipo de constrangimento. Atiram-se em cima do rival. Mordem a mão de quem acaricia. Até conseguirem seu quinhão de afeto. Mas também não guardam raiva.

Depois de rosnarem um para o outro, dois cães saem pulando e brincando juntos.

Que espécie sabe lidar melhor com as próprias emoções?

A questão da pele também é importante. Criamos indústrias do vestuário
porque não estamos satisfeitos com a própria pele, e inventamos estratagemas para cobri-la. Boa parte da humanidade se dedica a fabricar tecidos, a inventar e a vender roupas. Qualquer pessoa ambiciona se vestir bem. Fortunas são despendidas em novos guarda-roupas. A moda vira, e toca a gastar tudo outra vez.

Cachorro, não. Nasce vestido. Imagine-se quanto delírio, quanta mão-de-obra seria evitada se o ser humano tivesse a mesma tranqüilidade a respeito da própria aparência.

Chegamos ao X da questão. Criamos filosofias, escrevemos livros. Há
quem faça ioga, meditação. Tudo para aprender a aceitar o fardo da existência. O cão já nasce aceitando. A vida é e não é, deve pensar o cão, com a, sabedoria de um mestre zen. É o que constato todo dia ao chegar em casa exausto do trabalho, de mau humor com o chefe, com a fatura do cartão de crédito prestes a me degolar, o cheque especial batendo as folhas em torno de minhas orelhas como uma ave de rapina.

Sento na varanda e meu cachorro se aproxima: Sem nenhuma preocupação
na vida. Deita-se aos meus pés e prepara-se para receber sua dose cotidiana de carinho. Eu me submeto. Raça superior é isso aí.

2. Truque no Assaltante

JURO QUE É VERDADE. Tenho uma amiga especializada em se livrar
de assaltantes. Sua arma: a imaginação. Maria Adelaide é escritora. Madura, de aparência frágil, é o tipo de vítima ideal. Foi assaltada várias vezes. Acabou desenvolvendo uma estratégia. Certa vez andava pela rua do Curtume, vindo de um encontro profissional. Notou que um rapaz vinha em sua direção, a mão enfiada dentro do casaco. Prestes a sacar a arma. Olhou em torno. Ninguém! Não teve dúvidas. Saltitou em direção a ele, com um sorriso de orelha a orelha!

— Você! Finalmente nos encontramos! Como vai sua mãe?

Faz tanto tempo que não nos vemos!
O rapaz hesitou, em dúvida. Maria Adelaide continuou, rápida.

— E a Cidinha, tem visto a Cidinha? Como é que ela está?
— Bem…
Abraçou o rapaz.

— Agora eu preciso ir. Mas vê se não some, hein?! Telefona! Fugiu em
direção ao carro, deixando o ladrão parado, com ar de dúvida. Na vez seguinte, saía com uma amiga da Pinacoteca do Estado, na avenida Tiradentes. Lá adiante viu um trombadinha se aproximando. Não teve dúvidas. Virou-se para a amiga e começou a brigar, aos gritos!

— Você nunca podia ter feito isso comigo! Ah, mas você não presta. O
que você fez não tem perdão. Você vai me pagar!
A amiga arregalou os olhos, chocada com a gritaria, cada vez maior.
O trombadinha aproximou-se, já enfiando a mão no bolso. Adelaide gritou
ainda mais. Parecia prestes a partir para as vias de fato.

— Não me responda! Fica quieta, você não tem o direito de falar!
O ladrão ainda tentou estabelecer contato:
— Dona… dona…
— Fica quieto você também! — gritou para o assaltante.
— Você não sabe o que ela me fez.
— Mas o que foi que ela aprontou? .
— Ela acabou com a minha vida!
O possível assaltante pensou um segundo e aconselhou:
— Mata ela.
— É o que eu devia fazer! Acabar com você, ouviu? — vociferou
Adelaide para a amiga.

O rapaz foi embora — possivelmente para não ser envolvido em crimes
maiores. Quando estava longe, a amiga recuperou a fala.

— Que eu fiz?
— Nada. Eu vi que o ladrão vinha em nossa direção. A rua estava vazia e
aprontei um escândalo. Assim, ele desistiu. Vamos embora?
Partiu sorridente, com a amiga cambaleante.
A última vez foi em uma floricultura da avenida dos Bandeirantes. Acabava
de comprar um buquê. O rapaz entrou de arma em punho.

— Passa a carteira!- E você, dá o dinheiro! — gritou para a vendedora.
A caixa ficou paralisada. Adelaide respondeu, fria.
— Estou só com cartões de crédito, sem dinheiro. Não adianta você levar
minha carteira, não vai ter lucro nenhum.
— Não quero nem saber! Passa a grana.
Adelaide voltou-se furiosa e interpelou a caixa.

— Não ouviu o que ele disse? Se ele está roubando, é por que tem
necessidade e precisa do dinheiro. Passa a grana!
O assaltante fez que sim, feliz pela compreensão.
— É isso mesmo! Se eu assalto é porque preciso!
Levou todo o dinheiro da floricultura. Adelaide continuou incólume, com a
bolsa fechada. Seu segredo:
— Preciso de um segundo para pensar. Se sou pega de surpresa, entrego
tudo. Mas quando tenho chance… invento uma história.
A imaginação ainda é a melhor arma para enfrentar as dificuldades da vida
moderna!

3. Romântico ritual

Quando cheguei à academia, notei que meu personal trainer, Igor, mostrava rugas na testa. Não nego, fiquei curioso: saber da vida alheia é uma das minhas atividades prediletas.

— Tudo bem? — perguntei- lhe.

Ele apertou uns botões e desandei a correr na esteira, veloz como um hipopótamo. Enquanto eu suava, Igor desabafou.

— Queria pedir a Júlia em casamento e lhe dar um anel de noivado, como se fazia antigamente. Mas todo mundo diz que é brega.

Aspirei mais uma golfada de ar e pedi a ele para me explicar. Segundo contou, namorava Júlia fazia cinco anos. Pretendia se casar até dezembro. Comprou alianças e um anel de cristal. Pensou em combinar um jantar com a família de ambos e pedi-la diante dos pais. Os amigos criticavam.

— Você acha que é cafona?

— Dá um segundo, não consigo respirar! — respondi, nos minutos finais da corrida.

Terminei a esteira. Particularmente, admiro os delicados rituais do passado. Aconselhei:

— Faça tudo como pensou. Ela nunca vai esquecer. E, se for brega, qual o problema?

Na semana seguinte, não resisti:

— Como foi?

Seus olhos faiscaram:

— Maravilhoso!

Preparou a surpresa. Combinou tudo com os pais da jovem e sua própria família. De tarde, a irmã de Júlia a levou para o salão de beleza. Igor só foi buscá-la quando todos estavam reunidos, à espera do casal.

Em casa, diante das duas famílias, ela surpreendeu-se:

— O que você aprontou?

Igor ajoelhou-se. Nem lembra direito o que disse, de tão nervoso:

— Falei que a amava. Ofereci a ela o anel e perguntei se aceitava se casar comigo. Antes de ela responder, no entanto, queria ouvir seus pais.

Os futuros sogros brincaram, fingindo estar em dúvida. Mas logo concordaram. Júlia, em lágrimas, respondeu:

— Sim! Claro que sim!

Adorou o anel. Trocaram alianças. As mulheres presentes choraram. Em seguida, os noivos e as famílias comemoraram com um jantar.

— Você estava certo, ela nunca vai esquecer! Nem eu! — comentou. — Se você não tivesse dado o empurrão, nunca teria tido coragem!

Fiquei pensando: quantos suaves rituais do passado nós abandonamos hoje em dia? Gestos bonitos são tachados de bregas, de cafonas. Antes, as pessoas costumavam se vestir especialmente para ir ao teatro, ao cinema ou jantar fora. Os homens, principalmente, nem ligam mais para isso. Mas chegar bem-vestido a qualquer lugar é um ritual que faz bem e eleva a autoestima.

Também acho feio chegar sem presente a um aniversário, mesmo que seja só uma lembrancinha para dizer: “Pensei em você!”. Participar de batizados, de bodas de prata, oferecer um jantar a um amigo que conseguiu um bom emprego ou enviar flores para quem lançou um livro são delicadezas que muita gente acredita ultrapassadas. O mundo moderno é rápido, prático, e tantas pequenas coisas parecem ter perdido a razão de ser.

Mas eu acredito nesses rituais que marcam os bons momentos da vida. Rituais que estabelecem laços, expressam afeto, falam de emoções! Francamente, não tenho medo de ser tachado de brega, cafona ou coisa que o valha. Como disse a Igor, por que temer meras palavras?

A cerimônia de noivado do casal, com declaração e anel, está sendo comentada em todo o bairro. As amigas de Júlia suspiram, desejando que seus namorados sejam tão românticos quanto Igor. Ele também anda surpreso.

— Estou fazendo o maior sucesso — comentou, enquanto me botava para correr na esteira mais uma vez.

E concluiu:

— Nunca pensei que fosse tão bom ser romântico!

4. O Automóvel

QUANDO PAPAI COMPROU nosso primeiro carro, mamãe decidiu:

— Vou tirar carta de motorista!

Eu era criança. Não era comum que mulheres dirigissem. Mamãe tinha
alma de pioneira. Por exemplo, trabalhava fora, enquanto suas amigas se
conformavam em ser donas-de-casa. Morávamos em uma cidade do interior. A auto-escola só tinha um jipe. Começaram as aulas. Comigo no banco de trás, as mãos presas agarradas na capota. O jipe dava solavancos e rodopiava pelas ruas. O instrutor aterrorizado.

— O breque, o breque! Aperte o breque!

Mamãe se confundia. Enfiava o pé no acelerador. Ela gritava. O instrutor
gritava. Os pedestres corriam. Entre as façanhas, arrancou a porta de um Karmann

Guia. Na última aula antes do exame arrasou a entrada do mercado municipal.

Repetiu duas vezes. Na terceira, o examinador tremia:

— Mais devagar! Assim a senhora enfia o carro em uma árvore.

Surpreendentemente, ganhou a carta. Talvez por terror dos examinadores.
Seu idílio automobilístico não durou muito. Papai perdeu o pouco que tinha. Viemos para São Paulo com uma mão na frente e outra atrás. Carro? Nem pensar. Ficou mais de dez anos sem dirigir. A vida melhorou. Minha cunhada ofereceu o volante.

— Só para ter o gostinho.

Entrou atrás de um caminhão parado. Mais uma temporada de exílio. Papai se recuperou montando um estacionamento. Todas as manhãs, lá estava mamãe, gordinha, de chapéu de homem na cabeça, dando ordens aos manobristas.

— À direita! Vira… vai que dá, vai que dá!

Só havia uma condição. Não fazer manobras ela mesma. Seria impossível
pagar os prejuízos. O incrível é que papai não gostava de dirigir. Desistiu de ter automóvel. Mamãe olhava os modelos. Sonhava. Mudaram-se para Santos. Tempos depois, papai faleceu. Para surpresa de toda a família, mamãe veio a arrumar um namorado, aos 64 anos. Perguntei, cauteloso, a idade do príncipe encantado.

— Sessenta e três. – Suspirei, aliviado. Se fosse trinta, aí sim, eu ficaria bem preocupado. Nunca se viu casal tão apaixonado. Era um senhor aposentado, de índole calma. Mamãe me contou:

— Sabe, ele está pensando em comprar um carro.
— Mãe, quem é doida por automóvel é você! Convenceu o velho?!
— Não tenho o direito?

Tinha. Juntaram as economias. Vieram para São Paulo. Compraram um
bom automóvel usado no sábado de manhã. Pegaram a serra. Na curva, havia óleo na pista. Derraparam de leve. Pararam. Um policial aproximou-se.

— Deixem o carro aí, já vamos ver. Venham para cá, por causa da curva.
Mal se afastaram caminhando, outro carro veio voando na curva. Derrapou
também. Voou em cima do automóvel. O que sobrou dava para levar em uma sacola. Não tinha seguro. Perda total. Revoltada, mamãe não se conformava:

— Não ficamos mais de uma hora com o carro!

Tentei confortá-la.

— Mamãe, quem sabe seu destino não é ter automóvel.
— Que conversa é essa de destino? Eu não me conformo! E vou ter!
Teve. Dali a meses comprou novo veículo em sociedade com o namorado.
Eu e meus irmãos demos uma força. Que felicidade! Subiam a serra só para comer um filé. Só se tornou um pouco ressabiada.
—- Ele dirige muito bem — contou, referindo-se ao grisalho. — Às vezes
tenho vontade de pegar a direção, mas não gosto da serra.
Com a proximidade do Dia das Mães, sinto um aperto no coração. Ela
partiu há dois anos, doente, e às vezes me dá uma imensa saudade. Sinto também uma sensação de alegria. Mamãe conseguiu seu carro. Felizmente, eu a ajudei a realizar seu sonho!

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